A Criança em Ruínas (Coleção Gira)

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Após o sucesso de Morreste-me, José Luís Peixoto retoma o seu principal tema – o luto – com a mesma sensibilidade e grandeza na construção imagética. Transitando desde a melancolia à beleza do nascimento, do saudosismo ao cansaço, aqui encontramos “o último esconderijo da pureza”: seus versos. Livro vencedor do Prêmio da Sociedade Portuguesa de Autores.

Author(s): José Luís Peixoto
Edition:
Publisher: Dublinense
Year: 2017

Language: Portuguese
Pages: 52
City: Porto Alegre/RS
Tags: Poesia - Poemas - Literatura Portuguesa

Arte poética
1
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
ainda que tu estejas aí e tu estejas aí e
o teu sono anoiteceu mais que a noite
o silêncio solar das manhãs
há o silêncio circunscrito à tua volta
este foi o ano em que nasceste
caminha pelo teu corpo um silêncio como uma aragem
tu forma de homem pessoa
mãe queremos ainda passear
entre as manhãs que sofremos, entre as esperas de tudo o que não nos quis,
a morte é esta caneta que não é os meus dedos.
não te pergunto de onde chegas?,
tudo será arrumado um dia.
vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino.
estou sozinho de olhos abertos para a escuridão. estou sozinho.
ninguém.
2
quando nasci. esperava que a vida.
olho as minhas mãos. nas minhas mãos tudo passa.
espelho, és a terra onde as raízes rebentam de mistérios.
estou deitado sobre a minha ausência,
entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
quantas vezes apostaste a tua vida?
a primavera chegou antes do tempo a esta sala.
estou sentado numa cadeira simples
entre as palavras da minha voz, as minhas palavras, renasce um silêncio
há saudade para sentir como há livros nas prateleiras a fechar mundos
como não tenho lugar no silêncio onde morrem as gaivotas,
estou só numa praça vazia sem mim
eram as estrelas, caminhante,
3
fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre
tenho aquela que me olha e que olho
não posso encontrar mais
pergunto se posso dizer o teu nome a uma flor
subimos a torre eiffel
o marulhar do teu
era sangue nas mãos deles do teu
hoje não há vento e posso ver-te melhor
não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
no tempo em que éramos felizes não chovia.
dá-me alguma da tua pele terra
se esta é a história de dois que se resgataram da vida,
estou aqui. esta mesa. tu estás sentada num sofá que só posso imaginar
ultimamente não consigo dormir e não consigo acordar. ontem
todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só
esse filho só de sangue que te escorre pelas pernas
o barco avança sem destino.
quando os nossos corpos se separaram olhámo-nos quase a desejar ser felizes
no papel, as palavras escondidas, as nuvens.
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
ninguém pode saber que este poema é teu.
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
vamos separar-nos. nada nunca mais me trará
não. ninguém saberá o que aconteceu.
Sobre o autor
Coleção Gira
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